Sabedoria convencional na área contábil-financeira

Foto: Snowing/Freepik

Por Patrick Oliveira Matos
(Director of Technical Accounting na Natura&Co)

John Kenneth Galbraith, um dos grandes economistas de nosso tempo compartilhava algumas características comuns de outros grandes economistas, como o interesse no comportamento humano e como esse comportamento permeava questões tidas como puramente econômicas. Adam Smith, por exemplo, antes de economista era filósofo, estudioso da moralidade das escolhas dos indivíduos e o efeito dessas características individuais na economia.

Galbraith frequentemente questionava verdades tidas como “universais”, como em seu livro “The Affluent Society”, de 1958, onde ele levou a sociedade norte-americana a reconsiderar certas verdades assumidas, principalmente em relação ao raciocínio lógico aplicado pelos governantes na condução do país e mesmo pela própria sociedade nas suas convenções morais e nos seus receios e medos explícitos. “Mais pessoas morrem do excesso de comida do que pela falta dela nos Estados Unidos”. Embora criticada à época, há de se convir que doenças cardiovasculares, tipicamente associada a péssimos hábitos alimentares notadamente existentes na sociedade americana, matam mais de 200 vezes mais por ano do que a subnutrição naquele país (dados da universidade de Oxford de 2017).

No mesmo livro, Galbraith mencionou que “somos guiados em parte por ideias que são relevantes para outros mundos. Fazemos muitas coisas que são desnecessárias, algumas que são desinteligentes e algumas poucas que são insanas”. Essa afirmação questionava os valores americanos que levavam à criação de riqueza individual, mas que ignorava necessidades públicas básicas como educação e estradas de qualidade. Em seu raciocínio, acabou por criar um conceito que podemos traduzir como “sabedoria convencional”, onde, na medida em que o comportamento econômico e social é complexo e mentalmente cansativo, o raciocínio lógico é pouco valorizado na psique do indivíduo. Consequentemente, o indivíduo associa a verdade à conveniência, interesse próprio, bem-estar e até mesmo a autoestima.

Nosso raciocínio (ilógico) adora a sabedoria convencional. Principalmente quando os efeitos dessas verdades envolvem fatores que mexem com nossa empatia ou, de lado oposto, com nossos medos, insatisfações ou indignações. Um proeminente advogado e ativista dos direitos da população de rua nos anos 80 nos Estados Unidos certa vez afirmou que havia à época três milhões de pessoas em situação de rua no país. Esse dado incrivelmente incômodo e angustiante, era também igualmente alto, ao imaginar-se que representaria algo próximo de 3% de toda a população norte-americana. Em outro fórum acadêmico, esse mesmo advogado disse que a cada 45 segundos, uma pessoa sem teto morria.

Esse advogado, Mitch Snyder, certamente conseguiu direcionar a atenção da opinião pública a esse problema estrutural da sociedade, o que é louvável. Porém, o nosso raciocínio preguiçoso toma nota destes fatos pela comodidade de ser empático com uma causa nobre e com o sofrimento alheio. Por outro lado, imaginar que a cada cem indivíduos, três encontram-se em situação de rua e que a cada 45 segundos um desses indivíduos morre de inanição (ou seja, 700 mil sem-teto mortos por ano) em um dos países mais desenvolvidos do mundo representam dados pouco factíveis e claramente exagerados e exige a aplicação de um pensamento crítico cansativo e pouco conveniente para a maior parte das pessoas. Nosso cérebro adora ouvir dados não comprovados de especialistas em determinados assuntos. Mitch Snyder eventualmente confessou não ter dados para suportar essas afirmações, e que estas tinham o intuito de chamar a atenção a um tema relevante, o que de fato ele conseguiu.

Dentro do ambiente financeiro, mais especificamente no mundo da contabilidade e reporte, somos também de certa forma doutrinados com algumas verdades que advém da sabedoria convencional e permeiam nossas escolhas contábeis. O conservadorismo talvez seja um dos grandes exemplos. Repetido à exaustão no ambiente contábil, tem o status de “princípio”, muito embora seja combatido inclusive na Estrutura Conceitual para relatório Financeiro do IFRS, que indica o exercício de “cautela” ao fazer julgamentos sob condições de incerteza. Porém, se a sabedoria convencional traz uma correlação direta com a forma na qual nossa mente funciona (inclusive no que diz respeito às nossas reações a incentivos morais ou financeiros, por exemplo), não é de se esperar que o normatizador contábil esteja alheio a esses efeitos.

Vejamos esse mesmo exemplo mais a fundo: a Estrutura Conceitual determina que o exercício da prudência (e não do conservadorismo) apoia a neutralidade, e não a avaliação indiscriminada de que os julgamentos permitam a subavaliação dos ativos ou receitas ou a superavaliação dos passivos ou despesas. Isso é também aprofundado na Estrutura Conceitual em sua declaração que o exercício da prudência não implica uma necessidade de assimetria (por exemplo, uma necessidade sistemática de evidências mais persuasivas para apoiar o reconhecimento de ativos ou receitas do que o reconhecimento de passivos ou despesas) e que essa assimetria, se eventualmente ocorrer, não refletiria uma característica qualitativa das informações financeiras úteis. Sendo esse o raciocínio, como explicar a assimetria refletida no reconhecimento de ativos contingente e provisões de acordo com o IAS 37 (CPC 25, Provisões, Passivos Contingentes e Ativos Contingentes)? Um passivo é contingente (e, portanto, não reconhecido) na medida em que a probabilidade de perda que implique uma saída de caixa para liquidar a obrigação é tida como possível (de até 49%). Um ativo, por sua vez é contingente quando não for “praticamente certo” (90? 99%?). Notadamente níveis de certeza idênticos em relação à probabilidade de impacto financeiro para uma entidade são tratados de maneira diferente para o reconhecimento de ativos e passivos. Conservadorismo?

Outra verdade oriunda da sabedoria convencional é que a contabilidade é a “linguagem dos negócios”. Repetida até por grandes gurus de mercado, como Warren Buffet, ela vem do pressuposto de que a contabilidade é a linguagem que as entidades utilizam para se comunicar com seus acionistas e demais participantes do mercado. Segundo historiadores, antigos romanos cobravam uma taxa de multa entre os habitantes que falavam demais, chamada de “linguarium”, indicando que a palavra latina “língua” sempre se relacionou com o contexto da comunicação. Comunicação, que por sua vez busca ser efetiva na medida em que a sua compreensibilidade é clara para todos os envolvidos em uma interlocução. Em vista da complexidade do ambiente contábil e a diversidade dos julgamentos subjetivos que são refletidos em uma demonstração financeira (sem contar o volume abissal de informações repetitivas e irrelevantes para a análise de um leitor) é raro encontrar no mercado algum analista, investidor ou acionista que use essas demonstrações como seu principal foco de análise. Vejamos o exemplo do IAS 19 (CPC 33 (R1), Benefícios a Empregados). Uma norma que envolve conhecimento altamente especializado na mensuração e divulgação de aspectos associados, principalmente a benefício pós emprego de natureza de “benefício definido”. Em projeto atualmente em andamento no IASB, o normatizador concluiu por meio de discussões e entrevistas com analistas de mercado que boa parte dessas informações são incompreendidas e, consequentemente, ignoradas por eles.

Documentos formatados e elaborados voltados diretamente às necessidades de acionistas e analistas, como os earnings releases, MD&A, entre outros, são comumente usados como a base principal de leitura para compreensão dos efeitos e dos eventos aplicáveis ao exercício da entidade que reporta, deixando em muitos casos as próprias demonstrações financeiras das quais essas informações se derivam em segundo plano. Parece improvável se fundamentar que a contabilidade é de fato a linguagem dos negócios se ela não é claramente compreendida sem a existência de documentos que “traduzam” seus efeitos em termos leigos.

A própria contabilidade como ciência também sofre um pouco disso. Frequentemente decisões impopulares envolvendo a iniciativa empresarial são associadas aos registros contábeis, que pela sabedoria convencional possuem um efeito significativo na performance das entidades. Certamente já ouviram afirmações como “a contabilidade da empresa diz que…”, “os números contábeis indicam que devemos fazer…”. A contabilidade nunca será responsável por decisões relacionadas a empregos, fechamento de operações, terceirizações, entre outros. A interpretação que damos a esses registros e números apresentados na contabilidade (bem como a gestão que os gera) é que no final do dia justifica uma forma particular de se decidir sobre estes diferentes temas.

Em um ambiente contábil complexo e com alto grau de julgamento, principalmente no que diz respeito à interpretação das IFRS, o raciocínio lógico e pensamento crítico é cada vez mais necessário e importante para que os eventos e transações refletidos nas demonstrações financeiras sejam de fato consistentes com a essência destas operações que busca representar. O uso automático de convenções e determinações não suportadas, mas intrinsicamente presas no raciocínio automático dos contadores e preparadores de demonstrações financeiras, seja por sabedoria convencional, histórico do passado ou por afirmações de especialistas possivelmente levará a uma representação que a distancie cada vez mais dos princípios estabelecidos pelo IFRS Como em certa ocasião comentou Joni Young, professora da Anderson School of Management, University of New Mexico, “é importante entendermos como chegamos aonde estamos hoje para que possamos continuar a questionar se as escolhas que fizemos no passado ainda devem governar como vamos caminhar no futuro”.

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