Relacionamento com o cliente e a luta antirracista

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Por Cíntia Araújo

Esta semana celebramos a abolição da escravatura, ocorrida por meio do decreto da Lei Áurea em 13 de maio de 1888. Vale ressaltar que o Brasil foi o último país a abolir o regime escravocrata.

O decreto, assinado em meio à muita pressão do movimento abolicionista, definiu a liberdade dos escravizados, mas não definiu nenhuma política de (re)inserção da população negra na sociedade. Assim, toda esta população, que passou gerações tendo a sua força de trabalho explorada e sua liberdade cerceada, se vê sem “eira nem beira”, sem acesso à educação, à moradia e à cidadania[1].

Desta forma, em pleno 2023, vivemos na pele o triste legado do período escravocrata: racismo, discriminação da população negra, ausência de representatividade em posições de poder, marginalização da população negra/pobre e uma desigualdade social abissal – o Brasil é o 9º país mais desigual do mundo em que o 1% mais rico ganha 38,4 vezes mais do que os 50% mais pobres[2].

Notícias de racismo e violência contra negros/pardos em lojas, supermercados e aeroportos ratificam a certeza de que a herança do período escravocrata também está presente em diversas dimensões do mundo dos negócios.

Fiquei perplexa ao ver o vídeo que registra o desabafo da professora e mestranda Samantha Vitena, mulher negra abordada por 3 homens da Polícia Federal e expulsa de um voo da Gol por, supostamente, negar-se a despachar uma mochila. Tanto a defesa de Samantha como passageiros que testemunharam o episódio atribuem o tratamento vexatório dada à professora ao racismo estrutural. O caso está sendo investigado por órgãos governamentais ligados aos Ministérios da Justiça, das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos e Cidadania[3].

Semana passada (7 de maio), um casal negro é agredido de forma vexatória em um supermercado da rede Carrefour na cidade de Salvador (BA). Na ocasião, a equipe de segurança do supermercado agrediu o casal sob suspeita de furto de latas de leite em pó. As agressões foram registradas em gravações de celular que viralizaram nas redes sociais[4].

Mais uma vez, vemos a Rede Carrefour envolvida num caso de violência contra negros. Aliás, no quesito agressões e atos de violência, a rede Carrefour já pode “pedir música no Fantástico”. Infelizmente, episódios de violência e discriminação na rede são recorrentes. Os episódios incluem denúncias de assédio contra funcionários, que eram constrangidos e impedidos de irem ao banheiro e violência contra animais. Neste último, um vira-lata chamado Manchinha é espancado e morto por um segurança do Carrefour de Osasco[5]. E, certamente não podemos esquecer do trágico episódio ocorrido em uma loja da rede em Porto Alegre em 2020, em que um homem negro, João Alberto, faleceu após ser espancado por seguranças.  Este episódio gerou muita revolta na opinião pública e levou a condenações da rede Carrefour na Justiça, resultando na assinatura de um Termo de Ajuste de Conduta e instituição de um programa de de bolsas de graduação e pós-graduação para pessoas negras[6].

Há muitos outros casos de discriminação e violência contra clientes e funcionários negros/pardos registrados em empresas e lojas ao redor do Brasil. Eu poderia fazer uma série sobre o assunto até o ano que vem.

Como professora e pesquisadora de Marketing, me questiono sobre (in)existência de iniciativas e programas de diversidade e inclusão racial e de seu impacto na gestão de relacionamento com o cliente.

Ora, se vivemos em uma época em que o cliente é “rei”, em que as empresas precisam ajustar toda sua estratégia de Marketing a fim de atender às necessidades do cliente para garantir sua vantagem competitiva, porque casos de clientes negros/pardos maltratados em lojas e supermercados são, ainda, tão recorrentes?

O pai do Marketing, Philip Kotler argumenta que vivemos em um período em que desenvolver um relacionamento duradouro e rentável com o cliente não é mais suficiente. É fundamental, adotar princípios organizacionais alinhados com a prioridade cada vez maior dada pela sociedade a questões ligadas à sustentabilidade social e ambiental. Kotler até convida as empresas a encararem a espiritualidade dos consumidores e clientes, conectando-se a esta sociedade colaborativa, globalizada e criativa do século XXI[7].

Acredito que para muitas empresas e profissionais de Marketing falta repensar a figura de “cliente”. Afinal, sabemos que caso um casal branco fosse flagrado roubando uma lata de leite em pó, as chances de serem agredidos seriam menos. Assim como são muito baixas as chances de uma mulher branca ser expulsa de um voo por não despachar sua bagagem. s

O racismo estrutural tão enraizado e negado por nossa sociedade me leva a crer que há um “ideal” de cliente, ideal este que não contempla pessoas negras/pardas. A discriminação racial (diretamente relacionada com a discriminação social) impacta as relações sociais em todas as suas dimensões, inclusive na relação empresa-cliente.

Por isso, não é suficiente mudar a descrição da missão e do código de conduta das empresas, para que, quando questionadas, as empresas possam apontar para seus sites e relatórios institucionais e declarar: “nossa empresa não comunga com atos racistas e violentos”, blábláblá. Para combater o racismo estrutural e todas as mazelas herdadas do período escravocrata é necessário instituir programas perenes, estruturantes e interdepartamentais para o desenvolvimento de uma cultura organizacional ANTIRRACISTA, em que funcionários (contratados diretos e terceirizados) sejam educados quanto aos estereótipos e enviesamentos sociais como também advertidos e punidos por atos de discriminação e violência.

Uma empresa antirracista é construída a longo prazo, com o engajamento de seus executivos e acionistas a fim de que as políticas de diversidade e inclusão não sejam uma publicidade vazia e insípida, mas sim, medidas proativas e efetivas no combate à discriminação e na inclusão da população negra, não somente como consumidores, mas também como cidadãos.


[1] Silveira, D. (n.d.). 13 de maio — Dia da Abolição da Escravatura – Brasil Escola. Brasil Escola. Retrieved May 8, 2023, from https://brasilescola.uol.com.br/datas-comemorativas/dia-abolicao-escravatura.htm

[2] Abrahao, J. (2022). Mapa da desigualdade.

[3] Souza, J. (2023, April 29). Advogado de mulher expulsa de voo vê racismo estrutural e diz que ela está muito abalada | Bahia | G1. G1. https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2023/04/29/advo   gado-de-mulher-expulsa-de-voo-ve-racismo-estrutural-e-diz-que-ela-esta-muito-abalada.ghtml

[4] Bulhões, B. (2023, May 7). Carrefour em Salvador investiga agressão contra casal negro – Estadão. Estadão. https://www.estadao.com.br/brasil/casal-negro-e-agredido-em-loja-do-grupo-carrefour-em-salvador-nprm/

[5] Redação. (2022, November 10). Sete vezes em que o Carrefour atuou com descaso e violência | Geral. https://www.brasildefato.com.br/2020/11/20/sete-vezes-em-que-o-carrefour-atuou-com-descaso-e-violencia

[6] Termo de Ajustamento de Conduta – Carrefour Comércio Ltda., (2021). https://www.mpf.mp.br/rs/atos-e-publicacoes/termo-de-ajustamento-de-conduta-tac/tac-carrefour/termo-de-ajustamento-de-conduta-tac-assinado-com-o-carrefour

[7] KOTLER, P.; KARTAJAYA, H.; SETIAWAN, I. Marketing 3.0: From Products to Customers to the Human Spirit. Hoboken: John Wiley & Sons, Inc., 2010. v. 296