Entendendo a violência contra mulher sob a lente da interseccionalidade

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Por Drª Cíntia Araujo, Professora e pesquisadora em Administração

Para que haja um combate efetivo da violência contra a mulher, em todos os contextos, inclusive no contexto do ambiente corporativo, é fundamental considerar as interseccionalidades que envolvem o papel da mulher na estrutura social. Isto implica compreender que mulheres de grupos sociais minoritários são mais vulneráveis à violência. É amplamente comprovado em diversas pesquisas que mulheres negras/pardas e/ou de classes sociais baixas são sofrem mais violência que mulheres brancas e/ou de classes sociais mais altas. Em um amplo trabalho de pesquisa[1] feita entre a consultoria de inovação social Think Eva[2] e o LinkedIn, que coletou 414 respostas por meio de    questionário online, mostra que 52% das mulheres que declararam já ter sofrido violência no ambiente de trabalho eram negras e 42% destas tinham renda entre 2 e 6 salários mínimos (entre R$ 2.424 e R$7.272). Vale acrescentar que o sentimento de insegurança é 11 pontos percentuais maior entre mulheres de classes mais baixas.


Este fenômeno reflete a notória desigualdade social em que vivemos. O relatório elaborado pelo IPEA baseado no Atlas de Vulnerabilidade Social[3] (Marguti et al., 2017) confirma as significativas desigualdades entre mulheres brancas e negras: desde 2000, os indicadores de capital humano e renda e trabalho das mulheres negras são inferiores aos das mulheres brancas indicando maior vulnerabilidade social tanto em áreas urbanas como em áreas rurais. Certamente, os efeitos da desigualdade social entre mulheres brancas e negras são refletidas em tempos de crise. Desde o início da pandemia em 2020, o índice de desemprego entre mulheres negras foi maior – o grupo de trabalhadores que dependiam da circulação das pessoas nas cidades, como babás, domésticas e motoristas, foram altamente prejudicados pelas restrições de deslocamento, e como grande parcela das pessoas atuando nestas profissões são mulheres negras, estas sofreram mais com a demissão, aumento de horas trabalhadas e até mesmo perda de moradia e insegurança alimentar[4].

E, infelizmente, tempos de crise econômica e financeira intensificam estas discrepâncias de realidades – o cenário de crise econômica e financeira do país devido à pandemia da COVID-19 é um triste exemplo. De acordo com o levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, uma entre quatro mulheres com idade superior a 16 anos declararam ter sofrido algum tipo de ato violento (Bueno et al., 2021). Com o avanço da violência contra mulheres, as mulheres negras e periféricas, como esperado, foram mais atingidas (Oliveira et al., 2021).

Porque entender essa palavra complicada “interseccionalidade”? O que isso implicada no combate e prevenção da violência contra mulher no ambiente de trabalho e no ambiente corporativo?!

Bel Hooks, escritora e expoente do movimento feminista negra, falecida em 2021, argumentou, de forma contundente, que as primeiras reivindicações do feminismo nos EUA partiam da perspectiva de mulheres brancas de classe médica e com alta formação educacional. Esta perspectiva impedia o movimento de compreender que enquanto o movimento feminista clamava por oportunidades profissionais iguais às oferecidas ao homem branco, as mulheres mais vulneráveis por sua classe social e raça (mulheres negras e indígenas) não tinham nem direito a um emprego digno!![5]

A partir desta compreensão, percebemos a importância do conceito de interseccionalidade, que defende indivíduos pertencentes a grupos minoritários por pertencerem a grupos menos privilegiados da sociedade devido sua classe social, raça, etnia, gênero, religião e orientação sexual. Consequentemente, estes grupos sofrem as distintas formas de violência (assédio moral e sexual, discriminação, opressão, racismo, patriarcalismo) em níveis de intensidade diferentes[6] (Crenshaw, 2002). Assim, o movimento feminista contemporâneo precisa ter uma abordagem heterogênea, considerando as interseccionalidades inerentes das diferentes posições das mulheres na estrutura social.

Desafios da mulher negra no ambiente de trabalho e corporativo

No Brasil, a mulher negra foi, por muito tempo, anônima e invisível, como também foram o seu trabalho e contribuição para a sociedade, apesar de seu indiscutível papel de sustentadora nos âmbitos econômico, afetivo e social na complexa estrutura da sociedade e da família brasileira[7].

Como temos falado nessa série, a objetificação ou coisificação do corpo da mulher é historicamente e amplamente disseminado em nossa sociedade, o que faz com que muitos indivíduos se sintam à vontade de cometer atos de violência contra a mulher: afinal “esta mulher é um objeto a ser utilizada do modo que for mais conveniente.” Como herança do período escravocrata que perdurou no país por quase 4 séculos, a objetificação da mulher é mais contundente às mulheres negras, que foram desumanizadas para serem objetos de reprodução e prazer sexual[8]. Quem não lembra da imagem da Globeleza, veiculada por anos a fio nos carnavais da TV aberta?!

Quando não invisível, anônima e “sensual”, à mulher negra foi atribuído o rótulo de guerreira. O estereótipo da mulher negra guerreira é amplamente glorificado na mídia e nas redes sociais, como vimos nas diversas manifestações sobre o grande desempenho da ginasta negra Rebeca Andrade nas Olimpíadas de Tóquio. Já em seu título, um artigo da UOL denota a ampla propagação e exaltação deste estereótipo “Rebeca Andrade tem seis irmãos e aprendeu a ser guerreira com a mãe”.

Apesar deste estereótipo da mulher negra guerreira possuir certa atratividade por remeter a figuras imponentes e belíssimas do imaginário da cultura pop (vide as guerreiras Dora Milaje do blockbuster da Marvel Comics, “Pantera Negra”), o impacto deste estereótipo pode ser prejudicial às mulheres negras em diversos aspectos. Um estudo sobre o perfil psicológico e saúde mental de mulheres negras americanas mostra que muitas das entrevistadas relataram sentir-se pressionadas a agir como “supermulheres”, com uma constante aparência de força, abnegação, controle e sucesso apesar dos recursos limitados, mesmo em situações em que na verdade se sentem vulneráveis e carentes de ajuda[9].

No Brasil, outros estereótipos recaem às mulheres negras ao associar aos negros atributos “positivos” como, por exemplo, alegria, musicalidade, ritmo e resistência física. O estabelecimento destes rótulos restringe a mulher negra a um reduzido número de papéis sociais: se os negros são alegres e musicais, estes devem ocupar posições relacionadas à música ou dança; se são alegres e fisicamente fortes, devem atuar em esportes. Desta forma, mulheres negras são dissociadas de papéis de destaque como executivas, políticas, pesquisadoras, docentes entre outros[10].

Semana que vem falarei um pouco mais sobre a interseccionalidade, abordando as especificidades da realidade das mulheres indígenas e trans.

Claro, peço que consultem as fontes citadas neste artigo. Em especial, o relatório elaborado pela Think Eva, e o LinkedIn “A reinvenção da cultura corporativa -Tendências globais de talentos do LinkedIn 2022”. Esta leitura é muito útil para todos os profissionais, homens e mulheres, que estejam comprometidos na construção de um ambiente de trabalho saudável, inclusivo e inovador (de fato).

Até mais,

Cíntia


[1] Think Eva. (2022). Assédio no Contexto do Mundo Corporativo – Think Eva. Think Eva,. https://thinkeva.com.br/pesquisas/assedio-no-contexto-do-mundo-corporativo/

[2] Think Eva: https://thinkeva.com.br/sobre-nos/

[3] Marguti, B. O., Rocha, B. N., Pinto, C. V. da S., Costa, M. A., & Curi, R. L. C. (2017). Relatório de pesquisa – A nova plataforma da vulnerabilidade social: primeiros resultados do índice de vulnerabilidade social para a série histórica da PNAD (2011-2015) e desagregações por sexo, cor e situação de domicílio.

[4] Jr. Casal, M. (2020). Mulheres negras e pandemia: reflexões sobre raça e gênero. OXFAM – Brasil. https://www.oxfam.org.br/blog/mulheres-negras-e-pandemia/

[5] Hooks, B. (2015). Mulheres negras: moldando a teoria feminista. Revista Brasileira de Ciência Política, 16, 193–210. https://doi.org/10.1590/0103-335220151608

61] Crenshaw, K. (2002). Documento para o encontro de Especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, 10(1), 171–188. https://doi.org/10.1590/s0104-026×2002000100011

[7] Gonzalez, L. (2016). A mulher negra na sociedade brasileira: Uma abordagem político-econõmica.

[8] Think Eva. (2022). Assédio no Contexto do Mundo Corporativo – Think Eva. Think Eva,. https://thinkeva.com.br/pesquisas/assedio-no-contexto-do-mundo-corporativo/

[9] Manke, K. (2019). How the “Strong Black Woman” Identity Both Helps and Hurts. Greater Good Magazine – Science-Based Insights for a Meaningful Life. https://greatergood.berkeley.edu/article/item/how_the_strong_black_woman_identity_both_helps_and_hurts

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