Desafios da inserção e permanência das mulheres trans e mulheres indígenas no mercado de trabalho

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Por Drª Cíntia Araujo, Professora e pesquisadora em Administração

A identidade de gênero é a forma como a pessoa pensa sobre si mesma e a transgeneridade ocorre quando um indivíduo não se identifica com seu gênero biológico. Importante ressaltar que um transgênero não é necessariamente homossexual[1]

Quando analisamos a violência contra a mulher sob a lente da interseccionalidade, precisamos abordar o assédio por expressão ou identidade de gênero. O assédio de identidade de gênero é definido como “qualquer comportamento ou conduta que, por razões de expressão ou identidade de gênero, seja feita com o propósito ou efeito de violar a dignidade e criar um ambiente intimidador, hostil, degradante, ofensivo ou segregado”[3](UNESP, 2019).

Lamentavelmente, o assédio de identidade de gênero é outra violência muito frequente na sociedade brasileira. De acordo com o relatório elaborada pela organização não-governamental internacional Transgender Europe, nosso país é o que mais mata trans no mundo: entre os de 2008 e 2015, aproximadamente 650 trans foram assassinados no Brasil. Este número é quatro vezes maior que o número do México, segundo país no ranking de violência contra transexuais1.

Esta dura realidade também é refletida nos espaços acadêmicos. Os desafios enfrentados pela comunidade trans já se iniciam no ensino básico. Primeiramente, alunos trans sofrem com a aceitação, situação que para muitos se estende até sua fase adulta. Em segundo lugar, temos a alta incidência de assédio contra alunos trans. Estes alunos sofrem isolamento social, bullyng, agressões físicas e outras formas de violência e/ou discriminação por parte de seus colegas. O isolamento e ostracismo contribuem para a baixa autoestima destes alunos, levando a um sentimento de aversão ao ambiente escolar, que pode culminar com o abandono escolar[3].  Os relatos abaixo ilustram a difícil realidade de alunos e alunas trans:

Na escola, quando me chamavam de veado ou de macho-fêmea, eu chorava, me afastava de todo mundo, não saía para o recreio. Eu só tenho a 3ª série completa. Eu parei em 96… Eu parei de estudar no meio da 4ª série. Notas boas… Por causa desse preconceito que não aguentava. Não aguentei o preconceito de me chamarem de macho-fêmea, de veado, de travesti, essas coisas todas.  (Bento, 2011, p. 555)

Estudei até a oitava série, mas para chegar lá eu passei por onze escolas.” (Fontanari, 2016, p. 9)

Soma-se a este cenário desfavorável a ausência de políticas de inserção e permanência de alunos trans, a dificuldade do corpo docente em ajustar metodologias e práticas de ensino, e a inexistência de dados escolares com recortes de gênero e sexualidade, dificultando a análise dos índices de evasão escolar entre alunos trans. As barreiras na vida acadêmica da comunidade trans se entendem no ensino superior, conforme vemos nos relatos descritos abaixo[4]:  

“Na época em que assumi a minha transexualidade eu tive que parar com meus estudos, pois cursava engenharia e era constantemente motivo de chacota e alvo de discriminação, já que 90% da turma era composta por homens.”

Eu tinha insegurança para cursar as disciplinas da minha licenciatura, pois as agressões físicas e verbais eram constantes. Por isso eu não tinha amizade com ninguém, me isolava em um canto e procurava não fazer contato visual com nenhuma pessoa. (D, que apesar das dificuldades conseguiu concluir sua graduação superior)”

Mesmo após conquistarem a legitimação da obtenção de títulos acadêmicos, mulheres trans ainda sofrem para ocuparem lugares nos espaços acadêmicos, enfrentando discriminações ao executarem tarefas cotidianas como ir ao banheiro ou utilizar o seu nome social. Uma professora trans  com título de mestre conta um momento adverso que enfrentou em uma escola em que atuou como docente do ensino básico e  fundamental4:

“Eu sempre tive dificuldades de colocação no mercado de trabalho. Busquei o sonho de ser professora e achei que a situação seria melhor quando concluísse meu mestrado e entrasse em uma vaga pública para lecionar. Porém, nem mesmo na escola com meus colegas de profissão sou respeitada. O diretor da instituição não respeita meu nome social; todos os meus registros e o livro de ponto são abertos no meu nome de registro civil, e os meus colegas professores fazem piadinhas com isso. As professoras da escola pediram a direção para me proibir de usar o banheiro feminino, e eles concederam, portanto, tenho de usar o masculino. Sofro muito assédio moral e inclusive já fui acusada de molestar meus alunos.”

É importante ressaltar que ainda não há uma legislação específica sobre o tema. No ano passado foi apresentado o Projeto de Lei 5008/20 que proíbe a discriminação quanto ao uso de banheiros públicos de acordo com a identidade de gênero. Caso seja sancionada, esta lei proibirá que indivíduos trans sejam discriminados por frequentarem banheiros em espaços públicos, estabelecimento comerciais e ambientes de trabalho[5].

Como consequência da falta de qualificação e do receio de enfrentarem assédio e outras formas de violência em espaços acadêmicos, dificuldade ainda mais o acesso de mulheres (e homens) trans no mercado de trabalho. Isto leva muitos deles ao trabalho informal e à prostituição. Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) estima que 90% das mulheres travestis e trans precisem prostituir-se para conseguir seu sustento4.

I. As mulheres indígenas no mercado de trabalho

Devido ao passado marcado pelo extermínio de povos originários e apagamento de sua cultura e ancestralidade, a presença destas mulheres nas universidades, na Academia e no mercado de trabalho é uma demonstração de resistência e ressignificação. Ao ocupar estes espaços, as mulheres indígenas mostram que estes espaços são de TODOS e TODAS. Nas eleições, ocorridas no último dia 3 de outubro, quatro mulheres para a Câmara dos Deputados, Sônia Guajajara (PSOL) e Juliana Cardoso (PT), em São Paulo; Célia Xakriabá (PSOL) em Minas Gerais; e Silvia Waiãpi (PL), no Amapá.

Além de contribuir para a ressignificação do papel das mulheres na sociedade, a ocupação dos espaços de poder e de tomada de decisão por mulheres indígenas contribuir para  a preservação e fortalecimento de sua identidade, uma vez que parte da opressão e discriminação sofrida por mulheres de etnias/raças minoritárias é a da imposição do ideal branco

Em um relato impactante, Arissana ressalta que optou pela carreira de professora, e posteriormente, pela conclusão de seu doutorado para lutar pra preservação e fortalecimento da cultura de seus ancestrais[6]:

“Eu penso que a educação escolar foi uma luta dos indígenas mais velhos que reivindicaram a chegada da escola na aldeia por acreditarem que o acesso ao conhecimento, à leitura e à escrita poderiam ajudar na luta. Sou fruto dessa luta que os mais velhos acreditaram. E não só eu, outros professores e estudantes indígenas também são frutos dessa luta coletiva. Lutamos pela garantia do território e fortalecimento da cultura Pataxó – da identidade do nosso povo.”

Arissana relata ainda que para dedicar-se ao doutorado, precisou se afastar de seu trabalho como professora em escolas indígenas, já que a escola em que atuava ficava a mais de dez horas de distância do local onde iria cursar o doutorado. Isto demonstra como o caminho para o ingresso no mercado de trabalho e progressão de carreira é ainda mais complexo para as mulheres indígenas.

Para a poetisa, escritora e compositora Julieta Paredes, a presença das mulheres indígenas em todos os espaços contribui para a construção de conhecimento feminista comunitário, envolvendo as diferenças e interseccionalidade[7].

“Mudanças sociais têm que ser feitas com nossos povos e não com quatro iluminadas em um café”


[1] Fontanari, J. F. (2016). O percurso escolar dos transgêneros no Brasil.

[2] UNESP. (2019). Guia de Prevenção e Identificação do Assédio Sexual. Universidade Estadual Paulista (UNESP).

[3] Bento, B. (2011). Na escola se aprende que a diferença faz a diferença. Revista Estudos Feministas, 19(2), 549–559.

[4] Licciardi, N., Waitmann, G., & Oliveira, M. H. M. de. (2015). A discriminação de mulheres travestis e transexuais no mercado de trabalho. Revista Científica Hermes – FIPEN, 14(julho-dezembro)

[5] Haje, L. (2020). Projeto proíbe discriminação ao uso de banheiros públicos de acordo com a identidade de gênero. Agência Câmara de Notícias. https://www.camara.leg.br/noticias/703034-projeto-proibe-discriminacao-ao-uso-de-banheiros-publicos-de-acordo-com-a-identidade-de-genero/

[6] Rachid, L. (2020). Conheça a luta de seis mulheres indígenas inspiradoras. Educação. https://revistaeducacao.com.br/2020/03/08/mulheres-indigenas-inspiradoras/

[7] Afune, G, & Anjos, A. B. (2020). “Temos que construir a utopia no dia-a-dia”, diz a boliviana Juliana Paredes. Agência Pública. https://apublica.org/2020/05/temos-que-construir-a-utopia-no-dia-a-dia-diz-a-boliviana-julieta-paredes/

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